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Bem ali, onde o dedão se encontra com o pé, apareceu uma dor lancinante. Ela tentou desconsiderar e seguir o que estava fazendo, seus olhos continuavam correndo pelo texto ansiosos por encontrar ali naquelas palavras, naquelas letrinhas em sequencia, algum sentido...mas seu pé direito incomodava e demandava insistentemente atenção. Ela, então, fazendo uma espécie de consessão a esse incômodo que produzia uma algaravia nos seus pensamentos, mudou a posição do pé e insistiu buscando sentido nas letrinhas. 

O texto falava algo sobre a incompletude existencial de todas as coisas..."esse ser existe?". E foi aí, bem nesse intervalo da respiração, na suspensão da interrogação, que a dor no dedão do pé direito se tornou incontornável. O autor prosseguia explicando  que, a essa pergunta não era possível responder  'sim' ou 'não'... mas a sujeita dor que aparecera em seu pé não se importava com esssa impossibilidade filosófica,  respondendo a essa pergunta sem uma palavra sequer, sem deixar espaços para dúvidas ou especulações: sim, a porra da dor no dedão do seu pé direito existia, sem a menor dúvida. 

E então, ela fechou os olhos frustrada, buscando ar. Acontece que seu diafragma, e todos os músculos de seu peitoral não perderam tempo levantando questões sobre a incompletude existencial da dor, simplesmente a dor doía, e, ao tentar respirar, ela se deu conta que toda a cadeia muscular que envolvia suas costelas havia se contraído um pouco mais do que o normal, buscando protegê-la da dor, enquanto ela tensionava os olhos e tentava ignorar a dor e se focar no amontoado de letras na tela. 

A impossibilidade de continuar perseguindo os caminhos das sequencias de letras na busca de sentido se tornou ainda mais frustrante, agora que acompanhada da impossibilidade de respirar fundo. Ela então arranca os óculos com vigor, repousa a cabeça sobre as mãos e tenta mais uma vez respirar fundo, sem sucesso. Já é possível perceber o limiar da frustração se transformando em raiva, ela empurra a mesa de estudos com uma violência contida, se volta para a janela enquanto solta um sonoro: "Merda!!", decidida a retomar o controle desse caos que se tornara esse espaço entre sua cabeça e o assento da cadeira e a ponta do seu pé direito.   

Movimenta o pescoço de um lado para o outro, para frente e para trás, de baixo para cima. Levando as mãos a nuca, amassa um pouco a superfície mole dessa região, com a cabeça baixa, de olhos fechados, percebe toda a parte inferior do maxilar, o pescoço tensionados, o queixo repousado sobre o esterno... Com as mãos apoiadas pesadamente sobre a nuca, tenta mais um vez respirar fundo, na saida do ar seus lábios relaxaram um pouco e esboçaram uma curvatura que poderia até ser um sorriso. Levanta a cabeça e começa a subir as mãos pela lateral do pescoço, chegando á base das orelhas. Continua experimentando com as pontas dos dedos essa textura mais ou menos macia sob a superfície da pele. Com a ponta dos dedos, observa que esse seu contorno é uma superfície porosa, percebe a diferença de temperatura entre seus dedos e a pele da sua face, experimenta esmagar um pouquinho os espaços desenhados pelas superfícies resistentes dos ossos, acompanha toda a extensão dessas linhas...  

Abre e fecha os olhos algumas vezes, sem interromper a investigação dessa superfície, passa as mãos pelos lábios, sente os vales que levam da curvatura do nariz aos limites laterais dos lábios e lembra-se que está velha...vai percorrendo com as pontas dos dedos as vias laterias do encontro entre o nariz e as bochechas, chegando à base do nariz, entre os olhos. Explora toda a extensão da cavidade ocular com um toque suave, de olhos abertos, de olhos fechados...brinca com a mobilidade do globo ocular, como fizera antes com o pescoço: de um lado para o outro, de cima para baixo... experimentando os limites de percepção visual dos seus entornos, alonga o olhar, enquanto vai tocando as sombrancelhas. 

Intensificando um pouquinho o toque, vai desenhando pequenos circulos na testa, que vão se preenchendo o espaço desde o centro da testa até as temporas. Percebe que, ao se distrair na brincadeira de explorar esse superfície fronterícia, que se revelara porosa, dera conta de preencher tudo aquilo que estava logo abaixo do seu pescoço com ar. A expansão causada pela entrada de ar se prolongava até um pouquinho abaixo do umbigo. E na saída, a passagem do ar pelo diafragma provocou algo, um micromovimento. Seu diafragma deu alguns pequenos saltinhos, aparecendo então um movimento tremular que provocou uma leve vibração que ressoava quase como um calorzinho até os ombros e a base do pescoço. E que chegou até os lábios como uma leve brisa que, de passagem provocou um relaxamento que levou a um leve sorriso zombeteiro: "decidida a retomar o controle do caos que se tornara aquele espaço entre sua cabeça, o assento da cadeira e a ponta do pé direito...eu hein, mas que volta para não usar as palavras: meu corpo está doendo, eu estou com dor no pé! Que prepotência hein criatura, te orienta!"  
E, agora, a dor no encontro do dedão com o pé direito não podia mais ser esquecida...mesmo que o pensamento tentasse, em um movimento ousado de retomar o texto: não se pode responder a questão "esse ser existe?" com sim ou não, somente com mais ou menos, uma vez que os seres são realidades plurimodais...entre a (sujeita-)dor que exigia atenção e o pensamento que simplesmente não cedia na sua obsessão por perseguir as letrinhas e encontrar um sentido: "Merda!". Tentou não perder o espaço conquistado desde o seu nariz até a região abaixo do umbigo, ocupou-o de ar. De olhos abertos, buscou acompanhar esse percurso: entrando pelo nariz, ocupando todo o volume da cabeça, do pescoço, do espaço entre as clavículas, as costelas, toda a extensão abdominal. 
Já estava de pé, caminhando distraídamente pelo quarto, ali no dedão de seu pé direito existia uma dor, uma dor que existia no dedão do meu pé direito exigia que se fizesse algo a seu respeito! Uma dor que existe sim, existe, mas poderia então, talvez, existir mais? Existir como sujeito? Despencou controladamente e sentou-se no chão, tomando o pé direito com as mãos.

Uma coisa qualquer linda de se ver

Eu gosto muito de letras, de contornos e também de linhas.
Me encantam as páginas ainda vazias, prontas para serem escritas, ou mesmo lidas.
Gosto de tinta, ai, como gosto de tinta! gosto de traços por definir, de rabiscos ainda incompreensíveis.
Adoro movimento ainda por fazer, aquela palavra ainda nas idéias, ou da história cujo ponto final não se vê!

Eu queria poder começar com uma exclamação e terminar com dois pontos, nossa, como eu queria! A possibilidade é tão fantástica; a interminável mudança, a certeza do incerto, me enchem de alegria. O que terminado está é fadado a ser estanque no tempo, inadequado ao logo mais. Talvez eu goste mesmo é de tudo, não, não, talvez de qualquer coisa.

Melhor, eu gosto é de ver o nada se transformar em qualquer coisa, em uma coisa qualquer linda de se ver, já que, em instantes, será algo que ainda não é.
Ansiava, e mesmo assim não percebia o quanto, por de(le)itar-me em seu peito. Naquele ângulo entre o seu pescoço e o seu esterno, justo no alcance da vista a vida latejando na aorta e o seu corpo, meu leito, pulsando sangue.

Meu primeiro amor encarnado. Amei seu corpo, seus atravessamentos, suas lutas. Suas questões, seus ângulos, seus pertencimentos. Seu toque, seu cheiro. Nossos entraves flutuantes, o tempo e o espaço que, se entrecruzando, fomos e nos foram. Amei meus incômodos, o que fui ao seu lado. Minhas crises, meu pescoço, minhas escolhas, meus pés. Meu ventre.

Minha primeira paixão ausente. As memórias se desfizeram em um ente intangível, que se postou além da consciência e do pessoal. O apego, o desejo de retorno ao paraíso idílico, que tornara-se inacessível, levaram a disruptura, a derrocada.

                   Lembrei-me de sua narrativa,
                   contei-me a nossa história,
                   fiz de seu peito meu leito.
 És corpo, somos pulso, movimento.